terça-feira, 14 de dezembro de 2010

"As Flores"



Eles estavam felizes em suas simples existências de flores.
Um ao lado do outro, expunham suas delicadas corolas ao
calor ameno da manhã de inverno.
Talvez por causa disso, havia uma inexplicável alegria nos
acordes dos violinos.
Ninguém podia imaginar quanto tempo eles tiveram que esperar
até estarem assim, tão próximos um do outro, pendendo do
mesmo galho.
Ela já havia perdido a esperança, enclausurada na forma
e pequena semente.
Ele repousou tranqüilo e quase sem memória, nas cinzas
de alguém que havia sido, muito depois do tempo em que
estiveram juntos, numa pequena vila de camponeses.
Lembrava vagamente da estranha alegria que sentira.
Cruzaram as águas do Atlântico, sempre na direção do poente.
Acordava e adormecia, embalado pelas ondas.
E à medida que o tempo passava, ia ficando cada vez
mais desperto.
Ela adivinhou que o reencontro estava próximo, quando
o fruto vermelho que a envolvia tocou seus lábios.

A jovem revolveu levá-la dentro da boca, riscou de leve sua pele
com os dentes brancos, cuspiu-a na palma suave da mãozinha casta.
Depois, deixou que Ela adormecesse meses a fio, no bolso quente
de um casaco.
Um dia, sem mais nem menos, chegou ao seu destino, desfez as
malas e sacudiu a roupa para o lado de fora das janelas da casa.
Ela foi arremessada para o sopé do morro, onde mais tarde,
haveria um lago e um jardim.
O peso da enxurrada e os pés dos operários empurraram-na cada
vez mais fundo, solo adentro.
Fechou-se o mais que pode, resistindo ao calor dos verões,
mas um dia, reconheceu que não podia esperar mais.
Explodiu num emaranhado de radículas, num caule fino e reto, que,
mesmo contra a sua vontade, crescia rápido, em direção à luz.
Não era mais do que duas pequenas folhas, tremendo ao fresco
vento outonal, quando um missionário apareceu.
A cerimônia foi breve, as palavras, desconhecidas,
o tom, solene.

E então - maravilha das maravilhas -
a caixa talhada em sândalo abriu-se,
no ar, e Ele choveu sobre Ela, em forma de nuvem cinza-prateada.
Se vegetais suspirassem ou gemessem de prazer, a noite chuvosa
teria sido entrecortada por ruídos inexplicáveis.
Mas, como brotos de cerejeiras e cinzas humanas têm uma
natureza dócil e silenciosa, Ele deixou-se assimilar por Ela,
molécula após molécula, até circular livre e feliz,
pelo delgado corpo, como seiva, evitando, por pura prudência,
as extremidades.
Parecia ser um final feliz, se não fosse à intromissão do elemental
responsável pelo projeto da árvore que Ela estava destinada a ser.

O tempo exigia uma tomada de decisão.
Ele não poderia continuar circulando por muito tempo como seiva,
sob pena de comprometer o desenvolvimento dela.
Ele deveria tornar-se uma parte qualquer da planta, permanecer ali
por algum tempo, submeter-se à natural continuidade do ciclo,
sendo descartado, e re-assimilado por um outro ser - vegetal animal
ou mineral.
Entristeceram
Ela deixou penderem seus poucos finos galhos, até o dia em que Ele
resolveu que seria flor.
E por que não, semente? Indagou o elemental – irritado.

Ele não disse nada, mas, Ela, em sua longa experiência de planta,
havia compreendido tudo.
Cerejeiras demoram a florescer.
Ele havia escolhido a alternativa mais segura.
Fechar-se em si mesmo, como semente, dentro de um fruto,
era correr o risco de perder-se dela novamente.
Sendo flor, mesmo murchando e morrendo, teria muito mais chances
de ser novamente assimilado.
Diante do firme propósito dele, o elemental deixou cair o queixo,
pensativo, até porque intuía que essa escolha sinalizava novos
problemas.
Depois da decisão dele, Ela abandonou sua posição de guia, no topo
do ramo central, e concentrou–se no desenvolvimento de um galho
secundário.
Em vão, o elemental tentou dissuadi-la.
Noite e dia repetia a Ela que experiências assim não resultavam bem.
Além de não fazer parte do projeto original, o novo galho era um
desperdício de energia.

A tarde caiu.
O templo esvaziou-se.
O calor do sol tornou-se noite gelada, que obrigava a um doloroso
recolhimento.

Estou sem forças - Ela pensou.
Estou cansado - Ele disse.

Então, a mão impulsiva de Mulher arrebatou o galho,
passando-o com um sorriso de desdém pelo rosto de Homem,
que caminhava, triste e silencioso, ao lado.
A mulher correu, e no meio da ponte sobre o lago, atirou Ele e Ela à água.
Surpresos, Eles gastaram as últimas forças tentando manter as
corolas para fora da água.
Por fim, boiavam, na direção da margem.
O homem cruzou a ponte, curvou-se, esticou o braço,
e na larga palma da mão, acolheu, com devoção, o galho.
Em silêncio, guardou as flores no bolso do paletó.
Naquela mesma noite, Ele e Ela foram cuidadosamente colocados
entre as páginas de um volume de Shakespeare.
Volta e meia, são visitados pelos olhos mansos de Homem,
que recorre a Eles, em busca de consolo.
Enquanto lê os poemas em voz alta, toca os corpos ressecados,
e nesse contato encontra um estranho alívio.

As flores lhe renovam a certeza de que o amor é algo palpável,
e não uma mera sensação.
Às vezes, os olhos brilham cheios de lágrimas, outras,
estão entorpecidas pela bebida.
Nesses momentos, Ele e Ela refletem sobre a insensatez dos humanos
e sua pouca ou nenhuma determinação.
E silenciam como as naturezas mortas costumam sempre fazer.
Mas, continuam felizes, em suas simples existências de flores.

As flores não falam
Mas podem enfeitar
A grande festa da Vida!

Maria Flor✿ܓ

"A Margarida"

Ela nasceu para ser mulher de um homem só.
Mesmo nas noites em que ficava na varanda
esperando aquele homem chegar cheirando
perfume barato, nunca pensara em dividir
sua cama com outro homem.
Havia se casado com as bênçãos da santa madre
e iria até o fim da vida daquele jeito.
Esperaria tantas noites quando aguentasse acordada
para ter um pouco do amor daquele homem.
Era uma rotina que doía na alma.
Horas e horas sentada na varanda,
olhando o céu a espera
de uma estrela cadente.

Fazia apostas com o céu.
Se uma estrela rasgasse o céu, é porque ele
já estava cruzando a esquina.
Mas, nem a estrela cruzava o céu e nem
ele estava na esquina.
Não faz mal.
Não se deve fazer apostas com o céu.
Mas se um cachorro latisse até ela contar até dez,
então ele chegaria e a beijaria como nunca.
O cachorro não latiu.
Noites e noites.

Às vezes ela dormia cansada de tanto esperar.
Ele chegava e não queria acordá-la.
Dormia tão bonito que era uma pena despertar
uma mulher tão linda.
E lá ia ele para o quarto e ela lá fora, na varanda,
até o sol começar a aquecer seu rosto e ela despertar.
O café da manhã, que sempre acalma a alma,
só fazia esquentar a discussão que acabava quase sempre
com olhos marejados, boca trêmula e arrastões
violentos até a cama.
Era o jeito dele de parar a briga e o dela de ter algum amor.
Parecia doença.
Ela precisava do jeito brutal dele e ele precisava de todo o
envergonhamento dela.

Excitava-se muito quando via que ela cruzava os braços
na altura dos seios para escondê-los.
Ficava enlouquecido quando ela se agachava, nua,
para que ele não olhasse tanto suas pernas nuas,
sua barriga, suas nádegas.
Era sempre tudo muito rápido.
Nem beijo havia.

Às vezes ela achava que seria a última vez.
Mas ela não teria nunca coragem de dizer a ele
o que queria.
Tinha medo da violência dele.
Submetia-se ao amor rápido, sem carícias a não ser
aquelas estritamente necessárias para a excitação dele.

A noite caía, igual a anterior, e ela estava lá na varanda.
Esperava por ele.
Na rua, alguns homens passavam e olhavam para ela,
ali a espera.
Um fez gracejo, outro assobiou, outro abriu o portão.
Esse chegou à varanda.
Ela, assustada, ficou em pé.
Seu corpo tremeu, sua boca umedecida se abriu
para dizer alguma coisa, mas foi calada
por um longo beijo.
Não reagiu.

tregou-se ali mesmo, na varanda, onde tantas noites sentiu
frio e sono e esperou.
Mas hoje é diferente.
Ela descobriu, finalmente, que seu nome era Margarida.
E as margaridas adoram ser desfolhadas.

Maria Flor
✿ܓ


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

(des) ENCONTRO...


- Um cigarro?
- Acenda, pra mim.
A chama do isqueiro; a brasa, começando a consumir

o papel e o fumo.
A fumaça subindo para a liberdade do ar,

e os pensamentos de cada
um procurando a sua própria liberdade.
A cama desfeita; o som preenchendo o quarto.
O brando reflexo da luz nas águas claras da piscina.

Todo um universo, entre quatro
paredes que delimitam um pequeno pedaço do mundo.

- Vamos tomar um banho?
- Vá indo; vou já.
Os pés no chão; o corpo bonito da mulher atravessando

o quarto, no balançar característico da fêmea
que se sabe atraente.
O homem, na cama, lança um rápido olhar às pernas

bronzeadas, admira a marca branca do biquíni
nas nádegas redondas.
Um gritinho:
- Ai! A água está fria! Mas tão gostosa!...
Um sorriso condescendente, no rosto do homem.
O sorriso de quem considera a mulher uma criança,

algo bonito que Deus criou para que o homem tenha

alguma alegria, em sua luta pela vida.
Mas, ao mesmo tempo, um sorriso triste,

de quem já viveu muito
e ainda não conseguiu começar a viver.
O corpo faz evoluções na piscina,

acompanhando o ritmo de “Café da Manhã”,
que as caixas de som continuam jogando no ar.


A mulher apanha a garrafa de champanha,
à beira da piscina,
e derrama um pouco na taça.
- Está triste?
- Eu? Não. Que idéia!
Mas a mulher insiste.
A intuição feminina lhe diz não existir hora melhor,

para se conhecer alguém,
do que no cigarro do “depois”;

quando as barreiras de cada um estão
afrouxadas pela gostosa sensação de saciedade,
que se segue à ânsia do desejo.
- Que há? Não foi bom?
O homem desiste de continuar pensando.


Apaga o cigarro no cinzeiro de vidro
e levanta-se preguiçosamente.
Lembra-se de haver lido, em algum lugar,

que cada pessoa tem um jeito
de reagir em seguida ao ato do amor.
Nu, enche de champanha uma taça e senta-se

na borda da piscina, com os pés dentro da água.
- Claro que foi; você faz muito bem.
- Você também;

e não estou querendo retribuir o seu elogio.
Mas parece que isso não é tudo.

Ou, pelo menos, tudo o que você queria.
Que foi que faltou?
- Nada, claro. Por que você pergunta isto?
- Porque estou vendo em seu rosto;

é como se uma parte de você estivesse satisfeita,
e a outra não.

O que é?
- Você é engraçada!
- Menos do que você.

- Que horas são?
- Três da manhã.
- Então, nos conhecemos há pouco mais de quatro horas,

naquela festa.
E estamos aqui, no motel, já fizemos amor...

já temos a nossa história.
E seus olhos continuam com a mesma tristeza.
Por que?
Uma olhada nos seios fartos e firmes,

que parecem flutuar
na superfície da água.
O homem se volta para acender outro cigarro,
em busca de alguns segundos para pensar.
E responde:
- Talvez por isto mesmo;

porque tudo não passa de algo que não
sabemos o que é.
Você é tão bonita!
Mas é como se a gente desfrutasse a beleza

num banco de carro, ou num quarto de motel...
e, depois, fica este gosto amargo na boca;
algo assim como se pudesse ter sido melhor,

você entende?
O champanha fazendo efeito.

O corpo nu torna a pessoa mais sincera,

como se junto com a roupa se despisse
uma parte dos preconceitos, da natural defesa
que cada um de nós tem contra todos os outros.
Ambos se predispõem a confidências;

em cada um existe aquela ferrenha necessidade
que o ser humano sente,
às vezes, de se fazer entender.
Como se alguém pudesse entender completamente

outra pessoa!
- Claro que entendo.


E é por isto que estou procurando conhecer você melhor.
Pode parecer engraçado, mas nem me lembro do seu nome.
- Fácil. Eu me chamo...
- Esqueça.
Na verdade, não me interessa o seu nome.
Um nome não passa de uma grande mentira,

atrás da qual nos escondemos para conviver com os outros.
E eu quero conhecer você; não quero que se esconda atrás

de um nome que não quer dizer nada.
Prefiro que você me fale, me olhe, me deixe descobrir

o que pensa.
Nos olhos do homem, uma luz de curiosidade.
E atração pelo desconhecido, que já se desfizera na ilusão

de posse, recomeça a surgir, de mistura a um impreciso temor.
Porque todos tememos aquilo que não conhecemos,

ou não conseguimos dominar; e, ao mesmo tempo, o adoramos;
ou não tem sido este o princípio básico das divindades,
em todos os tempos?
- Você gosta de filosofar?
- Tanto quanto você, ou qualquer outra pessoa.
Mas tenho a coragem de assumir os meus pensamentos,
e vocês têm medo de fazer isto.
Não é muito mais fácil pensar que tudo se resume a coisas reais,

que podemos tocar e controlar?
Basear a vida em aparências, dinheiro,

posição social e sexo pelo prazer?
São os valores que a gente assume, é a grande mentira

que tentamos aceitar,
o que nos deixa esse amargor na boca e na alma.
- Isto não lhe agrada?
- Às vezes; quem é que não gosta de pensar que pode fazer a sua vida,
decidir o seu destino?
Mas, de vez em quando, é preciso encarar a verdade e ver que

as coisas que chamamos de realidades não passam de ilusões,
e o que faz a nossa felicidade ou nos traz sofrimento são as coisas
que preferimos considerar como ilusões.
Pensativo, ele sorve um gole de champanha.
E a voz dela, embora suave,

lhe causa um pequeno sobressalto:
- Estou com frio. Me dá essa toalha?
Levanta-se e atende.
Ela sai da piscina, envolve-se no pano macio,

curva-se e acende um cigarro.
Depois, recostada na cama, acompanha com o olhar as espirais

caprichosas da fumaça.
Meio intimidado, o homem também sente necessidade de cobrir-se;

enrola a toalha na cintura e senta-se ao lado dela, na cama.

- Sabe que você pensa de um jeito esquisito?
- Talvez; mas vejo que você está com medo.
De mim, ou de ver que estou lhe mostrando algo que você sente
e prefere ignorar?
- Por que você veio comigo, então?
- Porque gostei de você.
Porque você é bonito e me pareceu um menino perdido,

brincando de adulto.
Porque senti que você precisava de amor.
E, agora, estou feliz por ter vindo; e por estar com você.

A mão delicada ensaia uma carícia, no rosto confuso,
e os lábios pousam sobre os cabelos curtos e revoltos.
Flutuam no ar os acordes de “Proposta”, que agora parecem

significar mais do que e costume.
A proximidade dos corpos reacende o fogo do desejo,

agora mais manso
e verdadeiro com o início do conhecimento.
A toalha escorrega dos ombros dela, os seios ficam

novamente expostos.
Os dedos do homem afagam carinhosamente um dos mamilos,

sentem a sua dilatação suave; descem para o umbigo,

e continuam a sua trajetória pela pele macia.
A memória traz de volta os sonhos do menino,

as suas ilusões sobre a vida;
coisas que o tempo e a necessidade de viver haviam levado
para sempre.
Uma pausa nas carícias, a lembrança de uma pergunta importante.
E a voz da mulher:
- Você acredita em amor?
- Acredito que você está aqui, e eu estou querendo você.
Acredito na atração pelo seu corpo, nas reações que sinto

no meu próprio corpo; parece que já acreditei em outro tipo de coisa,
há muito tempo.

O que você chama de amor?
- É algo que negamos e procuramos todos os dias.
É a necessidade de possuir uma pessoa de corpo e alma,

enquanto esperamos que ela não se deixe possuir inteiramente,
pois isto traria a morte do nosso sentimento.
É a emoção de olhar nos olhos de alguém
e sentir uma comunicação invisível e presente,

que através dos nossos próprios olhos encontra a nossa alma.
É a presença na ausência; o tudo que pode virar nada ou o nada que,

de repente, se torna tudo.
E é, também, o que estamos fazendo: esses seus beijos em minhas

coxas e as sensações que me causam; é a ânsia do desejo e a ternura
satisfeita da saciedade temporária.

É a diferença do gosto de cinza, na boca e na alma,

e a felicidade da comunhão total,
depois do orgasmo.
Sou eu, é você; é a parte mais devassa e pura,

mais alegre e triste, mais importante e escondida de cada
ser humano.

Esquecidas as toalhas, as peles se encontram.
Sob a ação dos afagos, os corpos se arrepiam e as vozes

se tornam roucas.
Algo impreciso, uma sutil mudança na relação entre os dois;

uma sensação de companhia, de complementação,

de que nenhum deles voltará a estar só.
A voz de Roberto Carlos escapa das caixas de som:
“- ... eu estou aqui, vivendo este momento lindo...”.
E o homem e a mulher se encontram,

se perdem um no outro.

Juntam seus corpos e misturam seus sonhos.
Gemem e sorriem, sabendo que depois este momento

haverá mudanças em ambos;
que nada será como antes.
No ambiente, como que uma aragem mágica.
E, por entre os sussurros, uma palavra apenas murmurada

se destaca das outras, como um grito confiante e desesperado,
e parece deter-se no ar,
flutuando sobre os dois:
- Amor!...

Maria Flor ჱܓ



"Magia"


Lá fora, o frio da noite que chega.
Aqui dentro, o fogo da lareira; as chamas crepitam,
e o seu calor aquece o grosso tapete,
sobre o qual nos sentamos para contemplar a dança das labaredas,
no mesmo ritmo imutável que vem desde o começo dos tempos.
Uma mesinha, com tampo de vidro.
Sobre ela, os queijos e os vinhos.
Silêncio entre nós;
aquele gostoso silêncio de quando não se precisa de palavras,
para compartilhar um sonho.
Uma leve e doce embriaguez.
A sensação de que nada existe lá fora, de que todo o mundo
(e, talvez, até o Universo!) se resume nesta sala,
onde somos Adão e Eva de uma nova Criação.

O tempo perdeu o sentido.
De que nos adianta marcar o tempo,
se sabemos que este momento mágico durará
para sempre em nós?
Existem momentos que fogem ao tempo,
porque se eternizam em nossa lembrança.
Olho em volta: as paredes de madeira, as estampas emolduradas de sempre.
Uma cabana como tantas outras, perdida entre as montanhas.
Talvez um lugar feito de encomenda para abrigar sonhos de uma noite,
como agora abriga os nossos sonhos.
Será que até os sonhos podem ser encomendados?

Meu olhar mergulha nos seus olhos brilhantes, e a pergunta perde a importância.
Que importa pagar por um sonho, se o sonho não tem preço?
Que importa quantos sonhos foram sonhados antes nesta cabana,
se é o nosso que sonhamos agora, e parece preencher todo o Universo,
como o calor do fogo preenche a nossa sala, e empurra o frio para a noite lá fora?

Seus olhos, seu rosto bonito; os dentes brancos, entre os lábios vermelhos.
Seu olhar também vagueia pelas paredes, mas parece distante,
como se pudesse enxergar um sonho a muito perdido nas dobras do tempo.
Será que é assim mesmo que está o meu olhar?
Talvez seja.
Diante dos sonhos, as barreiras caem; e estas paredes não são mais
que uma barreira contra o frio, lá fora.
Ou talvez sejam: é, talvez, a muralha que protege o nosso sonho
de um mundo onde o amor não tem lugar.

Coloco a minha taça sobre a mesa.
Apanho um pedaço de queijo, e uma idéia me ocorre.
Aqui estamos, só nós dois, isolados do mundo; entretanto,
a solidão não tem espaço em nossa cabana, porque não existe em nossa alma.
Quantas pessoas, ao redor da Terra, cercadas por outras pessoas,
sentem neste instante a dor da solidão?
E isso acontece por que a solidão está em suas almas.
Olho para você.
Mordisco o queijo, e o seu sabor parece espalhar-se por toda o meu eu;
quase diria que me traz uma sensação de felicidade.
Quando estamos felizes, tudo nos faz sentir essa felicidade:
uma música, um perfume, um simples sabor.
Por que teimamos em perseguir a felicidade nas coisas do mundo,
quando ela está dentro de nós?
Você sorri, de retorno do seu devaneio.
Talvez, ao viajar pelo passado, lembrasse de quantos momentos bons e ruins,
quantos sonhos e desilusões, foram necessários para que chegasse a este instante
de pura felicidade.
Seus olhos brilham, quando pergunta:
- Me dá um pedaço de queijo?
Apanho um pedaço de queijo..
Coloco-o em minha própria boca, entre os meus dentes. Provoco:
- Vem pegar!
O seu sorriso se amplia, os seus olhos brilham ainda mais;
parecem aumentar de tamanho.
Levanta-se sobre o cotovelo; os seus dentes refletem o brilho do fogo,
enquanto se aproximam do meu rosto.
As bocas se encontram.
Afrouxo os dentes; com a língua empurro o pedaço de queijo para a sua boca.
A sua língua me devolve o queijo, e o amassamos entre nossas línguas.
Onde foi parar o queijo?
Não sei se o engoli, se você o engoliu, ou se foi dissolvido no fogo que arde em nós.
Agora o que sinto é o sabor da sua língua na minha; um gosto de desejo,
de sonho, de vida.
Um sabor de Amor.

Você usava uma blusa de gola alta; onde foi parar?
De repente o meu rosto está entre os seu peito nu,
como se ali fosse o meu ninho desde o início dos tempos.
Os meus lábios percorrem o seu pescoço, deslizam sobre sua pele,
demoram-se nos seus lábios num beijo ardente.
Estamos nus, ambos.
Como?
Não sei.

Tudo parece perder-se, esfumar-se numa neblina deliciosa e repentina;
um túnel que percorremos juntos, rumo ao coração do Universo.
O seu cheiro invade as minhas narinas, a sua pele arrepia a minha pele.
A pele encontra a pele, o cheiro encontra o cheiro, o desejo encontra o desejo,
o Amor encontra o Amor!
O mundo se dilui, o tempo pára.
Os sonhos se encontram, a Vida renasce.
Corpo e alma juntos nos encontramos em Um ao nos perdermos de nós dois.
Beijos, carícias, movimentos ritmados; a ternura encontra o desejo e, juntos,
compõem a Sinfonia do Amor.

No fogo da lareira, os nossos desencantos se queimam na fumaça que se perde no céu...

Maria Flor ჱܓ

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

"Alma Gêmea da Minha Alma"

Caminhamos no escuro, tateando a luz que por vezes se desprende do olhar.
Viemos do fundo do tempo, quando as aves aprenderam a voar e
descobriram o caminho para o infinito.
Os nossos passos gravaram-se para sempre na poeira dos astros antes do fogo,
antes do gelo, antes das vulcânicas formações, antes da morte branca e
da contração primordial do universo...

E, no entanto, os astros nunca puderam prever o aparecimento de duas penas
tão iguais como as que nos enfeitam a alma, quando não estamos.
Você o gelo que ficou das avalanches de Maio, agora água que o sol aqueceu,
eu o fogo que sobrou do último solstício, agora o magma que nos queima.
Iguais como duas aves partilhando rotas adversas, mas em convergência de dimensões.

Tanto que, por vezes fecho os olhos e vejo o falcão que dorme no teu peito.
Vejo que me rasga o corpo com deleite e vejo-me, uma corça dos prados
morrendo por ti em todas as vezes que me cruzas rasgando o pensamento.
Sei que no tempo já toma as mais diversas formas e mesmo pedras,

juntos rolamos no mesmo rio como seixos.
Talvez por sermos ambos os filhos da lua cheia, nascidos de um luar de prata que
nos havia de bronzear a pele, o olhar, os dedos, o sorriso, os rituais do amor e o desejo.
E eu sei que fomos e havemos de voltar a ser, vida após vida, a renovação de nós mesmos,

em almas de pássaro, corça ou flor...
Segue-me e sente.
Te levo neste vôo proclamado no horizonte e, porém nunca antes escrito nas tábuas sagradas.
Um vôo em volta das intermináveis estações que nos fizeram fogo sob gelo ou
gelo sob fogo, crestando-nos a alma como pele de lobo.
O vôo que captará a minha alma peregrina, para te oferecer como festim celebrado
por mil tambores...

Nesta rua estivemos juntos, porque eu passei nela e tu estavas comigo.

Quero que saibas onde se tocam nossos dedos.
Nestas águas nos banhamos;
nesta espuma refrescamos nossos corpos, ali mesmo nos escrevemos porque
estavas em mim na janela dos meus olhos.
Para que saibas onde as nossas almas erram e se entrelaçam e desprendem,
sempre presas e esvoaçantes de liberdade, em céu ameno,
aqui mesmo fomos ave, ali voamos ao vento.

Sob o mesmo céu nos olhamos, a mesma lua nos viu maravilhados,
o mesmo sol secou as nossas lágrimas, porque tu vives em mim
como o rumo dos meus passos.
Aqui me tomas pela cintura.
Ali nos arrebatamos em silêncio, naqueles ramos balançamos ao vento,
seda com seda nos bordamos de esquecimento e nesta fresca relva

nos deixamos serenamente fundir no horizonte, porque habitas o meu peito,
porque és água da minha fonte.

Ali fomos fogo, ali cinza acesa, ali pétala dos sentidos, ali cristal tinindo,
ali flor de desejo, ali calmaria e beijo.
Neste jardim colhemos do olhar os ramalhetes da tentação e naquela cama nos
enfeitamos de mãos, busca, sedução e perfume de begônias e carícias
e fomos história e feitiço e amarração e euforia, encantamento,
rugido, arrepio e devoção.

E tudo porque moras comigo, e porque, onde eu for, irá ao meu desejo,
essa chama de luz que brilha e se cobre de fresca hera e me ilumina os caminhos
nesta imensidão avassaladora e terna da nossa ilha, feita da mais pura raiz de eras...
pois teu rosto contornei com meus dedos e gravei e lembrei de distantes tempos...
não te perderei jamais, vives em mim...

E quando soluças na madrugada, são minhas lágrimas que rolam pela tua face.
O teu sorriso é a minha gargalhada.

Viemos de tempos remotos e viveremos eternamente, nada importa,
somos essência,
somos almas gêmea.

Te aguardo na próxima era.

Maria Flor ჱܓ

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

"Incompossivel"

As coisas que mais machucam são aquelas que cabem
debaixo das unhas, nas frestas dos dentes,
nas linhas das mãos.
Foi isso que ela pensou logo depois, enquanto lavava a louça
com esmero redobrado, uma paciência infinita da qual pendia
o equilíbrio num fio tênue sobre um grande poço escuro,
passando lentamente, vez, depois de vez, depois de vez,
a esponja macia nas bordas da taça, tatuada de batom,
manchada do vinho de véspera.
A água fria lhe escorria pelos pulsos e ela sangrava

sem cor ou temperatura uma dor de torneira aberta.

Procurava nas gengivas, sobre a língua, o gosto do antes.
Queria de volta seus lábios daquela cor,

os lábios que sorriam, os lábios que diziam seu nome
sem essa sensação de que soa oco de sentido.
Procurava recompor-se entre os talheres sujos,

cada vez mais reluzentes, entre pratos cada vez mais limpos,
na ordem branca e asséptica da porcelana.
Procurava seu rosto no brilho gelado dos metais,

sua alma presa dentro das minúsculas bolhas de sabão
da espuma branca.

No côncavo nas colheres, um espelho lhe mostrava

uma outra cada vez menor, de ponta-cabeça.
Limpou o chão em frestas e ranhuras, nos cantos onde poderiam

ter ficado esquecidas esperanças renitentes,
buscando derradeiros vestígios de si mesma,
restos daquilo que acabara de ser.

Tirou os lençóis tentando não perceber a gravura dos corpos,
um cheiro doce de ontem, o peso das certezas em baixo relevo
ainda ali por descuido.
Estendeu a roupa de cama se esforçando para que

nenhuma dobra ficasse, evitando que ali qualquer lâmina
fosse esquecida, mesmo que soubesse da crueldade da noite
que logo trataria de lhe retalhar por dentro.

E assim foi, em parte, por que sempre mais cruéis podem

se fazer as noites.
Como naquela em que acharia, junto da camisola,

uma peça de roupa dele com um perfume que era um abraço
e era um golpe, era um soco na cara e um beijo na boca,
era um tombo e um ramo de tulipas.
Ou naquela, em que lembraria, assim que deitasse a cabeça no travesseiro,

do último beijo que não era uma despedida, que ela não sabia que seria.

Antes, muito antes que o sono viesse, dobrou as roupas espalhadas

pelo quarto e o vestido azul que cabia na outra de si, com o qual
ele tinha visto pela última vez a mulher que ela já não mais seria,
que era tão mais bonita, tão mais feliz e tão mais ela mesma.
Guardou o vestido com uma certa vergonha da sua miudez ,
da indignidade que viera lhe cobrir de nada.

Inventou poeira sobre os móveis, na esperança de limpar dali

o olhar que via novidade e surpresa na ordinariedade dos objetos
e quis tentar voltar a olhá-los da mesma forma,
mas soube que os olhos acometem-se de uma aridez absoluta
incapaz de reinventar as coisas assim que desertamos de nós mesmos.
Então percorreu a casa em busca de algo mais que ainda pudesse

ser arrumado e viu que nada restava e que tudo
permanecia fora do lugar.

E tudo porque ele se foi...

Maria Flor!