quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

"Alma Gêmea da Minha Alma"

Caminhamos no escuro, tateando a luz que por vezes se desprende do olhar.
Viemos do fundo do tempo, quando as aves aprenderam a voar e
descobriram o caminho para o infinito.
Os nossos passos gravaram-se para sempre na poeira dos astros antes do fogo,
antes do gelo, antes das vulcânicas formações, antes da morte branca e
da contração primordial do universo...

E, no entanto, os astros nunca puderam prever o aparecimento de duas penas
tão iguais como as que nos enfeitam a alma, quando não estamos.
Você o gelo que ficou das avalanches de Maio, agora água que o sol aqueceu,
eu o fogo que sobrou do último solstício, agora o magma que nos queima.
Iguais como duas aves partilhando rotas adversas, mas em convergência de dimensões.

Tanto que, por vezes fecho os olhos e vejo o falcão que dorme no teu peito.
Vejo que me rasga o corpo com deleite e vejo-me, uma corça dos prados
morrendo por ti em todas as vezes que me cruzas rasgando o pensamento.
Sei que no tempo já toma as mais diversas formas e mesmo pedras,

juntos rolamos no mesmo rio como seixos.
Talvez por sermos ambos os filhos da lua cheia, nascidos de um luar de prata que
nos havia de bronzear a pele, o olhar, os dedos, o sorriso, os rituais do amor e o desejo.
E eu sei que fomos e havemos de voltar a ser, vida após vida, a renovação de nós mesmos,

em almas de pássaro, corça ou flor...
Segue-me e sente.
Te levo neste vôo proclamado no horizonte e, porém nunca antes escrito nas tábuas sagradas.
Um vôo em volta das intermináveis estações que nos fizeram fogo sob gelo ou
gelo sob fogo, crestando-nos a alma como pele de lobo.
O vôo que captará a minha alma peregrina, para te oferecer como festim celebrado
por mil tambores...

Nesta rua estivemos juntos, porque eu passei nela e tu estavas comigo.

Quero que saibas onde se tocam nossos dedos.
Nestas águas nos banhamos;
nesta espuma refrescamos nossos corpos, ali mesmo nos escrevemos porque
estavas em mim na janela dos meus olhos.
Para que saibas onde as nossas almas erram e se entrelaçam e desprendem,
sempre presas e esvoaçantes de liberdade, em céu ameno,
aqui mesmo fomos ave, ali voamos ao vento.

Sob o mesmo céu nos olhamos, a mesma lua nos viu maravilhados,
o mesmo sol secou as nossas lágrimas, porque tu vives em mim
como o rumo dos meus passos.
Aqui me tomas pela cintura.
Ali nos arrebatamos em silêncio, naqueles ramos balançamos ao vento,
seda com seda nos bordamos de esquecimento e nesta fresca relva

nos deixamos serenamente fundir no horizonte, porque habitas o meu peito,
porque és água da minha fonte.

Ali fomos fogo, ali cinza acesa, ali pétala dos sentidos, ali cristal tinindo,
ali flor de desejo, ali calmaria e beijo.
Neste jardim colhemos do olhar os ramalhetes da tentação e naquela cama nos
enfeitamos de mãos, busca, sedução e perfume de begônias e carícias
e fomos história e feitiço e amarração e euforia, encantamento,
rugido, arrepio e devoção.

E tudo porque moras comigo, e porque, onde eu for, irá ao meu desejo,
essa chama de luz que brilha e se cobre de fresca hera e me ilumina os caminhos
nesta imensidão avassaladora e terna da nossa ilha, feita da mais pura raiz de eras...
pois teu rosto contornei com meus dedos e gravei e lembrei de distantes tempos...
não te perderei jamais, vives em mim...

E quando soluças na madrugada, são minhas lágrimas que rolam pela tua face.
O teu sorriso é a minha gargalhada.

Viemos de tempos remotos e viveremos eternamente, nada importa,
somos essência,
somos almas gêmea.

Te aguardo na próxima era.

Maria Flor ჱܓ

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

"Incompossivel"

As coisas que mais machucam são aquelas que cabem
debaixo das unhas, nas frestas dos dentes,
nas linhas das mãos.
Foi isso que ela pensou logo depois, enquanto lavava a louça
com esmero redobrado, uma paciência infinita da qual pendia
o equilíbrio num fio tênue sobre um grande poço escuro,
passando lentamente, vez, depois de vez, depois de vez,
a esponja macia nas bordas da taça, tatuada de batom,
manchada do vinho de véspera.
A água fria lhe escorria pelos pulsos e ela sangrava

sem cor ou temperatura uma dor de torneira aberta.

Procurava nas gengivas, sobre a língua, o gosto do antes.
Queria de volta seus lábios daquela cor,

os lábios que sorriam, os lábios que diziam seu nome
sem essa sensação de que soa oco de sentido.
Procurava recompor-se entre os talheres sujos,

cada vez mais reluzentes, entre pratos cada vez mais limpos,
na ordem branca e asséptica da porcelana.
Procurava seu rosto no brilho gelado dos metais,

sua alma presa dentro das minúsculas bolhas de sabão
da espuma branca.

No côncavo nas colheres, um espelho lhe mostrava

uma outra cada vez menor, de ponta-cabeça.
Limpou o chão em frestas e ranhuras, nos cantos onde poderiam

ter ficado esquecidas esperanças renitentes,
buscando derradeiros vestígios de si mesma,
restos daquilo que acabara de ser.

Tirou os lençóis tentando não perceber a gravura dos corpos,
um cheiro doce de ontem, o peso das certezas em baixo relevo
ainda ali por descuido.
Estendeu a roupa de cama se esforçando para que

nenhuma dobra ficasse, evitando que ali qualquer lâmina
fosse esquecida, mesmo que soubesse da crueldade da noite
que logo trataria de lhe retalhar por dentro.

E assim foi, em parte, por que sempre mais cruéis podem

se fazer as noites.
Como naquela em que acharia, junto da camisola,

uma peça de roupa dele com um perfume que era um abraço
e era um golpe, era um soco na cara e um beijo na boca,
era um tombo e um ramo de tulipas.
Ou naquela, em que lembraria, assim que deitasse a cabeça no travesseiro,

do último beijo que não era uma despedida, que ela não sabia que seria.

Antes, muito antes que o sono viesse, dobrou as roupas espalhadas

pelo quarto e o vestido azul que cabia na outra de si, com o qual
ele tinha visto pela última vez a mulher que ela já não mais seria,
que era tão mais bonita, tão mais feliz e tão mais ela mesma.
Guardou o vestido com uma certa vergonha da sua miudez ,
da indignidade que viera lhe cobrir de nada.

Inventou poeira sobre os móveis, na esperança de limpar dali

o olhar que via novidade e surpresa na ordinariedade dos objetos
e quis tentar voltar a olhá-los da mesma forma,
mas soube que os olhos acometem-se de uma aridez absoluta
incapaz de reinventar as coisas assim que desertamos de nós mesmos.
Então percorreu a casa em busca de algo mais que ainda pudesse

ser arrumado e viu que nada restava e que tudo
permanecia fora do lugar.

E tudo porque ele se foi...

Maria Flor!