terça-feira, 19 de janeiro de 2010

"Incompossivel"

As coisas que mais machucam são aquelas que cabem
debaixo das unhas, nas frestas dos dentes,
nas linhas das mãos.
Foi isso que ela pensou logo depois, enquanto lavava a louça
com esmero redobrado, uma paciência infinita da qual pendia
o equilíbrio num fio tênue sobre um grande poço escuro,
passando lentamente, vez, depois de vez, depois de vez,
a esponja macia nas bordas da taça, tatuada de batom,
manchada do vinho de véspera.
A água fria lhe escorria pelos pulsos e ela sangrava

sem cor ou temperatura uma dor de torneira aberta.

Procurava nas gengivas, sobre a língua, o gosto do antes.
Queria de volta seus lábios daquela cor,

os lábios que sorriam, os lábios que diziam seu nome
sem essa sensação de que soa oco de sentido.
Procurava recompor-se entre os talheres sujos,

cada vez mais reluzentes, entre pratos cada vez mais limpos,
na ordem branca e asséptica da porcelana.
Procurava seu rosto no brilho gelado dos metais,

sua alma presa dentro das minúsculas bolhas de sabão
da espuma branca.

No côncavo nas colheres, um espelho lhe mostrava

uma outra cada vez menor, de ponta-cabeça.
Limpou o chão em frestas e ranhuras, nos cantos onde poderiam

ter ficado esquecidas esperanças renitentes,
buscando derradeiros vestígios de si mesma,
restos daquilo que acabara de ser.

Tirou os lençóis tentando não perceber a gravura dos corpos,
um cheiro doce de ontem, o peso das certezas em baixo relevo
ainda ali por descuido.
Estendeu a roupa de cama se esforçando para que

nenhuma dobra ficasse, evitando que ali qualquer lâmina
fosse esquecida, mesmo que soubesse da crueldade da noite
que logo trataria de lhe retalhar por dentro.

E assim foi, em parte, por que sempre mais cruéis podem

se fazer as noites.
Como naquela em que acharia, junto da camisola,

uma peça de roupa dele com um perfume que era um abraço
e era um golpe, era um soco na cara e um beijo na boca,
era um tombo e um ramo de tulipas.
Ou naquela, em que lembraria, assim que deitasse a cabeça no travesseiro,

do último beijo que não era uma despedida, que ela não sabia que seria.

Antes, muito antes que o sono viesse, dobrou as roupas espalhadas

pelo quarto e o vestido azul que cabia na outra de si, com o qual
ele tinha visto pela última vez a mulher que ela já não mais seria,
que era tão mais bonita, tão mais feliz e tão mais ela mesma.
Guardou o vestido com uma certa vergonha da sua miudez ,
da indignidade que viera lhe cobrir de nada.

Inventou poeira sobre os móveis, na esperança de limpar dali

o olhar que via novidade e surpresa na ordinariedade dos objetos
e quis tentar voltar a olhá-los da mesma forma,
mas soube que os olhos acometem-se de uma aridez absoluta
incapaz de reinventar as coisas assim que desertamos de nós mesmos.
Então percorreu a casa em busca de algo mais que ainda pudesse

ser arrumado e viu que nada restava e que tudo
permanecia fora do lugar.

E tudo porque ele se foi...

Maria Flor!

Um comentário:

  1. Poxa Maria Flor...
    Se fechar os olhos posso visualizar tudo que escreveu...
    Que dor essa de se sentir abandonada...
    Você escreve como ninguem.
    Bjos meus!

    ResponderExcluir