sexta-feira, 25 de setembro de 2009

"Lágrima"

Encontraram-se um dia, uma lágrima, uma estrela,
uma pérola e uma gota de orvalho.
Falou primeiro a estrela:
"- Quem diria que eu tivesse o trabalho de descer das alturas luminosas,

para vir conversar com vocês três?
Não sabem que sou mais alta que as nuvens?
E que a minha altivez fulgura entre mil chamas radiosas,
na infinita amplidão?"

Mas, respondeu a pérola vaidosa:
"- Quem te dará valor, entre milhões de lâmpadas no espaço?
Tu não passas de um grão de esplendor, metido na poeira do infinito.
Ninguém se lembra de te por nos braços!
Enquanto eu, lá no fundo dos oceanos, sou buscada e vendida aos soberanos,
para enfeitar, com minha limpidez, as coroas dos reis!
Vivo no colo esplêndido dos nobres, e nos ricos seios das rainhas...
Não como ti, que sob o olhar dos pobres poetas vagabundos te encaminhas...
Valho mais que tu!
E ainda mais, valho que um orvalho e uma lágrima, pois ambos são gotas d'água,
sem o mínimo valor."

Disse o orvalho, com mágoa:
"- Qual de vocês três, tem esse encanto de se transformar em gozo,
na boca imaculada de uma flor?
Eu venho lá de cima, radiante, nos braços da alvorada cobrir de beijos uma rosa,
que se sente tão doce nesse instante, que vale a pena vê-la tão ditosa!
E trago o riso ao coração da Terra, engolfada em pranto.
Eis como sou feliz!
Na campina, ou no cimo da serra, sou sempre uma esperança cristalina,
nos lábios sorridentes de uma flor!
Calou-se o orvalho.
E a lágrima? Coitada, esta nada dizia...

"- E que respondes tu?"
Perguntaram os demais.
E ela, rolada na terra úmida e fria, nada ousava falar...
Porém, sublime e calma, respondeu:
"- Eu sou o perdão no crime e a vibração no amor!
Bailo no olhar risonho da alegria, moro no olhar tristíssimo da dor!
Eu sou a alma da saudade da harmonia!
Sou o estrilo na lira soluçante dos poetas, sou oração no peito dos ascetas,
sou relíquia de mãe em coração de filho,
sou lembrança de filho em coração de mãe!
Não vivo nos seios perfumosos, nos colos orgulhosos,
na ostentação efêmera do luxo...
Porém, penetro no espírito do mundo, seja do rei, do sábio mais profundo,
do rústico mais vil, do pecador, do santo, até na face do Senhor um dia já rolei.
Eu, lágrima pequena, penetrei no coração de Deus, e fiz estremecer,
abrir-se extasiado o pórtico dos céus! "

A lágrima calou-se humildemente, deslumbrando...
Em silêncio, a tudo contemplou serenamente, na vastidão vazia.

A estrela se ocultou atrás de uma nuvem e chorava.

A pérola desceu à profundeza dos mares e chorava também.

O orvalho tremulando sobre a relva também chorava.

E a lágrima?
Só a lágrima sorria!

Maria Flor!

"Flor da Pele"


Começou com um cheiro de terra úmida, que descobriu vir de sua própria pele.
Depois o apelo incontrolável da chuva convidando-a a purificar-se.
Por fim abelhas, perseguindo-a como se retivesse mel.
Um dia, ao acordar, sentiu-se drenada pela claridade que invadia
as frestas da veneziana.
Abriu a janela e desabotoou a camisola.
Uma margarida brotara em seu peito.
Como um animalzinho, ela inclinava o pescoço em direção à luz.
A primeira reação foi de espanto, mas ao verificar que seu colo
aquecia-se morno, ela sorriu, aceitando.
De pálpebras cerradas, o corpo era entrada.
O sol penetrava doce e intenso, e o filhote de margarida desenvolvia-se
em pétalas, caule e cor.
.
A caminho do trabalho parecia levitar,
sem qualquer esforço o trajeto desenrolava-se sob seus pés.
Adivinhava, ainda de olhos fechados, sorrisos de inefável beleza,
dando passagem à flor que rasgava o vestido.
Experimentava-se permeável à vida, sem ansiar entender-se,
à flor da pele.
.
Ao passar por uma praça, obedeceu ao impulso de enterrar-se junto
às raízes da grama fofa.
Ficou ali, alguns minutos...ou horas, como um cadáver feliz,
de abdômen para cima, fortalecendo a margarida.
O vira-latas farejou-a, a criança apoiou-se em seus seios para observar
de perto a criatura branca e amarela.
Misturava-se à superfície fértil, palpável, tal qual grão diluindo-se no todo.
Ao mesmo tempo, deixava-se contagiar por uma nova solidão,
distinguindo-a, ampliando-a, transcendendo-a: lucidez.
O céu era azul.
O mundo despia-se.
Estava à mercê das revelações.
.
Finalmente levantou-se, impregnada de pólen, entregando-se ao caminho
indicado pela flor-bússola.
Foi caminhando, ombros abertos, mãos espalmadas,
nariz alto sorvendo a manhã; distanciando-se... até o invisível.
Acreditam, alguns, que tenha desaparecido, sem vestígios.
Mas há os que aguardam, pacientemente, seu retorno:
afirmam que uma margarida no peito é coisa fragilíssima,
não dura para sempre.
Não dura...
.
.
.
Maria Flor!

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

"A Noite da Bruxa"

Lá fora um silêncio de pedra quebrava o sortilégio das árvores de braços nus,
erguidos em oferenda descarnada para o céu de Outono.
Lá dentro vigiava a bruxa, olhos faiscantes varrendo a clara noite.
Uma Lua - beldade cruel - pairava no céu como uma inevitável certeza:
a terra voltava a remexer-se sob a violenta contração do seu desejo,
renovada em cada Lua de seda, plena.

Recordava um estio de searas ondeantes - um cavalo branco irrompendo
a poente, a voz, o corpo, o homem que cavalgava paixões no olhar e a entrega
em juramento, nos rituais sagrados das rosas incandescentes.
O homem que lhe bebera a alma e a arrebatara sem qualquer razão que o
seu entendimento alcançasse.
Um ciclo que se fecha e uma luz que se extingue,
sem que a chama deixe de queimar-lhe
o ventre, nas noites de luar e encanto.
Partira uma noite levado pelos primeiros sinais de tempestade.
Uma música inaudível o conduzia para a estrada.
Ela ficou a vê-lo partir no cavalo da esperança, cavalgando o horizonte
como quem voa em direção ao céu.
Um beijo terno e já na boca um inquietante gosto de fel.
Perscruta as nuvens como quem nelas lê o traço dos seus futuros passos
e acenando-lhe distraído, ele que parte.
- Quando sentir que os teus braços são lianas,
partirei para onde a terra não me abrace,
onde a escuridão mais escura apenas me devolva à liberdade.
Dissera-lhe numa noite de amor.
Percebes? Disse-lhe que sim, que percebia.

Agora sabia que as suas noites escorriam pelas paredes como o luar
que lhe entrava janela adentro e que nada lhe devolveria a serenidade
daqueles momentos, serenamente algodoados pela doação dos corpos
e das mentes.
Um caminhante que lhe entrara pela alma adentro e na busca de uma obra
sempre imperfeita, sempre adiada no horizonte dos seus dias,
e lhe partira na demanda do vento.
Ficou a Voz.
A que lhe falava nas noites de lua cheia, quando a viam sair à rua,
cabelos ao vento, as rendas, os colares, as écharpes, os finos lenços.
Apesar de linda, serena, chamavam-lhe a Bruxa.
Temida, amada, odiada, vagueava pelo sol abraçando as árvores,
deitada formando com o corpo uma cruz, plantando e colhendo rosas
com que se ornamentava, fazendo fogueiras e queimando ervas.
Sentia-se árvore e plantava-se nua sob a chuva, no jardim em volta da casa.
Sentia as lianas que lhe partiam do corpo e se enredavam na vida à sua volta.
Queria cortá-las.
Libertar todos os pássaros, entender o vôo de todas as criaturas que lhe
escapavam da sua redoma de silêncio.
Alva de carnes, magra e rosada, olhos profundos que viam através dos rostos.
Quem a cruzava precavia-se de olhar.
Temiam sua beleza.
Dizia-se que lançava maus olhados e transviava homens,
mas nunca conheceram nenhum.
Apenas e sempre a loucura, as ervas, os conselhos que dava às escondidas
a quem a procurava.

Naquela noite a Voz voltou a chamá-la.
Ela soube que era de novo Lua cheia e preparou-se para o encontro.
Perdida na sua obra, talvez agora já terminada numa prega do tempo,
a Lua o traria certamente.
Um rodopio do vento elevou no ar folhas de um Outono recente.
Passaram crianças rindo, gelando–lhes o riso ao vê-la.
Na Praça Central havia um baile de bruxas, um hábito recente importado
de terras distantes, quando morbidamente a tradição local festejava os mortos
com paixão e comedimento.
Longe do barulho, sentou-se encostada a uma árvore.

Esperou que a voz lhe chegasse novamente, trazendo um amor distante,
mas o que a Lua iluminou foi um olhar iridescente de um violeta profundo,
olhos de lobo, de animal ou de mutante.
Ele veio.
Felino, distante, na sua imperturbável juventude.
A Lua empalideceu, o vento varreu a praça, parou a música,
balançou sem ser esperado o sino da Igreja emitindo o fúnebre canto de finados.
Ela acolheu-o no seu colo.
Recebeu-o no seu ventre em estocadas duras de cadência demoníaca,
a Lua ciente e contida, ela um rio que escorre para a nascente...
Ejacularam ambos numa cascata ardente como lava de vulcão galgando o monte.
Parou o vento, veio uma neblina densa do coração da terra.
Ela voltara a ser a jovem de cabelo vermelho e olhar insinuante.
Ele reclinou cansado a cabeça no seu colo, agora que terminava a sua obra de anjo,
vindo da terra onde se produz o sonho.

Ela afagava a própria vida, passando suavemente a mão pelos seus cabelos.
Assim a encontraram na manhã seguinte.
Gelada, a cabeça pendente, uma mão inclinada para um lugar que só ela vê e sente.
Nunca ninguém a vira tão bela.
Nem se lhe conhecia sorriso tão inocente...
Morreu a Bruxa, diziam.
Mas ninguém sabia por que lhe assentava tão bem o chamamento...
Naquela noite a bruxa morreu de amor...

Maria Flor!