quinta-feira, 24 de setembro de 2009

"A Noite da Bruxa"

Lá fora um silêncio de pedra quebrava o sortilégio das árvores de braços nus,
erguidos em oferenda descarnada para o céu de Outono.
Lá dentro vigiava a bruxa, olhos faiscantes varrendo a clara noite.
Uma Lua - beldade cruel - pairava no céu como uma inevitável certeza:
a terra voltava a remexer-se sob a violenta contração do seu desejo,
renovada em cada Lua de seda, plena.

Recordava um estio de searas ondeantes - um cavalo branco irrompendo
a poente, a voz, o corpo, o homem que cavalgava paixões no olhar e a entrega
em juramento, nos rituais sagrados das rosas incandescentes.
O homem que lhe bebera a alma e a arrebatara sem qualquer razão que o
seu entendimento alcançasse.
Um ciclo que se fecha e uma luz que se extingue,
sem que a chama deixe de queimar-lhe
o ventre, nas noites de luar e encanto.
Partira uma noite levado pelos primeiros sinais de tempestade.
Uma música inaudível o conduzia para a estrada.
Ela ficou a vê-lo partir no cavalo da esperança, cavalgando o horizonte
como quem voa em direção ao céu.
Um beijo terno e já na boca um inquietante gosto de fel.
Perscruta as nuvens como quem nelas lê o traço dos seus futuros passos
e acenando-lhe distraído, ele que parte.
- Quando sentir que os teus braços são lianas,
partirei para onde a terra não me abrace,
onde a escuridão mais escura apenas me devolva à liberdade.
Dissera-lhe numa noite de amor.
Percebes? Disse-lhe que sim, que percebia.

Agora sabia que as suas noites escorriam pelas paredes como o luar
que lhe entrava janela adentro e que nada lhe devolveria a serenidade
daqueles momentos, serenamente algodoados pela doação dos corpos
e das mentes.
Um caminhante que lhe entrara pela alma adentro e na busca de uma obra
sempre imperfeita, sempre adiada no horizonte dos seus dias,
e lhe partira na demanda do vento.
Ficou a Voz.
A que lhe falava nas noites de lua cheia, quando a viam sair à rua,
cabelos ao vento, as rendas, os colares, as écharpes, os finos lenços.
Apesar de linda, serena, chamavam-lhe a Bruxa.
Temida, amada, odiada, vagueava pelo sol abraçando as árvores,
deitada formando com o corpo uma cruz, plantando e colhendo rosas
com que se ornamentava, fazendo fogueiras e queimando ervas.
Sentia-se árvore e plantava-se nua sob a chuva, no jardim em volta da casa.
Sentia as lianas que lhe partiam do corpo e se enredavam na vida à sua volta.
Queria cortá-las.
Libertar todos os pássaros, entender o vôo de todas as criaturas que lhe
escapavam da sua redoma de silêncio.
Alva de carnes, magra e rosada, olhos profundos que viam através dos rostos.
Quem a cruzava precavia-se de olhar.
Temiam sua beleza.
Dizia-se que lançava maus olhados e transviava homens,
mas nunca conheceram nenhum.
Apenas e sempre a loucura, as ervas, os conselhos que dava às escondidas
a quem a procurava.

Naquela noite a Voz voltou a chamá-la.
Ela soube que era de novo Lua cheia e preparou-se para o encontro.
Perdida na sua obra, talvez agora já terminada numa prega do tempo,
a Lua o traria certamente.
Um rodopio do vento elevou no ar folhas de um Outono recente.
Passaram crianças rindo, gelando–lhes o riso ao vê-la.
Na Praça Central havia um baile de bruxas, um hábito recente importado
de terras distantes, quando morbidamente a tradição local festejava os mortos
com paixão e comedimento.
Longe do barulho, sentou-se encostada a uma árvore.

Esperou que a voz lhe chegasse novamente, trazendo um amor distante,
mas o que a Lua iluminou foi um olhar iridescente de um violeta profundo,
olhos de lobo, de animal ou de mutante.
Ele veio.
Felino, distante, na sua imperturbável juventude.
A Lua empalideceu, o vento varreu a praça, parou a música,
balançou sem ser esperado o sino da Igreja emitindo o fúnebre canto de finados.
Ela acolheu-o no seu colo.
Recebeu-o no seu ventre em estocadas duras de cadência demoníaca,
a Lua ciente e contida, ela um rio que escorre para a nascente...
Ejacularam ambos numa cascata ardente como lava de vulcão galgando o monte.
Parou o vento, veio uma neblina densa do coração da terra.
Ela voltara a ser a jovem de cabelo vermelho e olhar insinuante.
Ele reclinou cansado a cabeça no seu colo, agora que terminava a sua obra de anjo,
vindo da terra onde se produz o sonho.

Ela afagava a própria vida, passando suavemente a mão pelos seus cabelos.
Assim a encontraram na manhã seguinte.
Gelada, a cabeça pendente, uma mão inclinada para um lugar que só ela vê e sente.
Nunca ninguém a vira tão bela.
Nem se lhe conhecia sorriso tão inocente...
Morreu a Bruxa, diziam.
Mas ninguém sabia por que lhe assentava tão bem o chamamento...
Naquela noite a bruxa morreu de amor...

Maria Flor!

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