terça-feira, 14 de dezembro de 2010

"As Flores"



Eles estavam felizes em suas simples existências de flores.
Um ao lado do outro, expunham suas delicadas corolas ao
calor ameno da manhã de inverno.
Talvez por causa disso, havia uma inexplicável alegria nos
acordes dos violinos.
Ninguém podia imaginar quanto tempo eles tiveram que esperar
até estarem assim, tão próximos um do outro, pendendo do
mesmo galho.
Ela já havia perdido a esperança, enclausurada na forma
e pequena semente.
Ele repousou tranqüilo e quase sem memória, nas cinzas
de alguém que havia sido, muito depois do tempo em que
estiveram juntos, numa pequena vila de camponeses.
Lembrava vagamente da estranha alegria que sentira.
Cruzaram as águas do Atlântico, sempre na direção do poente.
Acordava e adormecia, embalado pelas ondas.
E à medida que o tempo passava, ia ficando cada vez
mais desperto.
Ela adivinhou que o reencontro estava próximo, quando
o fruto vermelho que a envolvia tocou seus lábios.

A jovem revolveu levá-la dentro da boca, riscou de leve sua pele
com os dentes brancos, cuspiu-a na palma suave da mãozinha casta.
Depois, deixou que Ela adormecesse meses a fio, no bolso quente
de um casaco.
Um dia, sem mais nem menos, chegou ao seu destino, desfez as
malas e sacudiu a roupa para o lado de fora das janelas da casa.
Ela foi arremessada para o sopé do morro, onde mais tarde,
haveria um lago e um jardim.
O peso da enxurrada e os pés dos operários empurraram-na cada
vez mais fundo, solo adentro.
Fechou-se o mais que pode, resistindo ao calor dos verões,
mas um dia, reconheceu que não podia esperar mais.
Explodiu num emaranhado de radículas, num caule fino e reto, que,
mesmo contra a sua vontade, crescia rápido, em direção à luz.
Não era mais do que duas pequenas folhas, tremendo ao fresco
vento outonal, quando um missionário apareceu.
A cerimônia foi breve, as palavras, desconhecidas,
o tom, solene.

E então - maravilha das maravilhas -
a caixa talhada em sândalo abriu-se,
no ar, e Ele choveu sobre Ela, em forma de nuvem cinza-prateada.
Se vegetais suspirassem ou gemessem de prazer, a noite chuvosa
teria sido entrecortada por ruídos inexplicáveis.
Mas, como brotos de cerejeiras e cinzas humanas têm uma
natureza dócil e silenciosa, Ele deixou-se assimilar por Ela,
molécula após molécula, até circular livre e feliz,
pelo delgado corpo, como seiva, evitando, por pura prudência,
as extremidades.
Parecia ser um final feliz, se não fosse à intromissão do elemental
responsável pelo projeto da árvore que Ela estava destinada a ser.

O tempo exigia uma tomada de decisão.
Ele não poderia continuar circulando por muito tempo como seiva,
sob pena de comprometer o desenvolvimento dela.
Ele deveria tornar-se uma parte qualquer da planta, permanecer ali
por algum tempo, submeter-se à natural continuidade do ciclo,
sendo descartado, e re-assimilado por um outro ser - vegetal animal
ou mineral.
Entristeceram
Ela deixou penderem seus poucos finos galhos, até o dia em que Ele
resolveu que seria flor.
E por que não, semente? Indagou o elemental – irritado.

Ele não disse nada, mas, Ela, em sua longa experiência de planta,
havia compreendido tudo.
Cerejeiras demoram a florescer.
Ele havia escolhido a alternativa mais segura.
Fechar-se em si mesmo, como semente, dentro de um fruto,
era correr o risco de perder-se dela novamente.
Sendo flor, mesmo murchando e morrendo, teria muito mais chances
de ser novamente assimilado.
Diante do firme propósito dele, o elemental deixou cair o queixo,
pensativo, até porque intuía que essa escolha sinalizava novos
problemas.
Depois da decisão dele, Ela abandonou sua posição de guia, no topo
do ramo central, e concentrou–se no desenvolvimento de um galho
secundário.
Em vão, o elemental tentou dissuadi-la.
Noite e dia repetia a Ela que experiências assim não resultavam bem.
Além de não fazer parte do projeto original, o novo galho era um
desperdício de energia.

A tarde caiu.
O templo esvaziou-se.
O calor do sol tornou-se noite gelada, que obrigava a um doloroso
recolhimento.

Estou sem forças - Ela pensou.
Estou cansado - Ele disse.

Então, a mão impulsiva de Mulher arrebatou o galho,
passando-o com um sorriso de desdém pelo rosto de Homem,
que caminhava, triste e silencioso, ao lado.
A mulher correu, e no meio da ponte sobre o lago, atirou Ele e Ela à água.
Surpresos, Eles gastaram as últimas forças tentando manter as
corolas para fora da água.
Por fim, boiavam, na direção da margem.
O homem cruzou a ponte, curvou-se, esticou o braço,
e na larga palma da mão, acolheu, com devoção, o galho.
Em silêncio, guardou as flores no bolso do paletó.
Naquela mesma noite, Ele e Ela foram cuidadosamente colocados
entre as páginas de um volume de Shakespeare.
Volta e meia, são visitados pelos olhos mansos de Homem,
que recorre a Eles, em busca de consolo.
Enquanto lê os poemas em voz alta, toca os corpos ressecados,
e nesse contato encontra um estranho alívio.

As flores lhe renovam a certeza de que o amor é algo palpável,
e não uma mera sensação.
Às vezes, os olhos brilham cheios de lágrimas, outras,
estão entorpecidas pela bebida.
Nesses momentos, Ele e Ela refletem sobre a insensatez dos humanos
e sua pouca ou nenhuma determinação.
E silenciam como as naturezas mortas costumam sempre fazer.
Mas, continuam felizes, em suas simples existências de flores.

As flores não falam
Mas podem enfeitar
A grande festa da Vida!

Maria Flor✿ܓ

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